sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

MÁRIO BENEDETTI: PORQUE CANTAMOS poema de

Se cada hora vem com sua morte
se o tempo é um covil de ladrões
os ares já não são tão bons ares
e a vida é nada mais que um alvo móvel

você perguntará por que cantamos

se nossos bravos ficam sem abraço
a pátria está morrendo de tristeza
e o coração do homem se fez cacos
antes mesmo de explodir a vergonha

você perguntará por que cantamos

se estamos longe como um horizonte
se lá ficaram as árvores e céu
se cada noite é sempre alguma ausência
e cada despertar um desencontro

você perguntará por que cantamos

cantamos porque o rio esta soando
e quando soa o rio / soa o rio
cantamos porque o cruel não tem nome
embora tenha nome seu destino

cantamos pela infância e porque tudo
e porque algum futuro e porque o povo
cantamos porque os sobreviventes
e nossos mortos querem que cantemos

cantamos porque o grito só não basta
e já não basta o pranto nem a raiva
cantamos porque cremos nessa gente
e porque venceremos a derrota

cantamos porque o sol nos reconhece
e porque o campo cheira a primavera
e porque nesse talo e lá no fruto
cada pergunta tem a sua resposta

cantamos porque chove sobre o sulco
e somos militantes desta vida
e porque não podemos nem queremos
deixar que a canção se torne cinzas.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Rio de Janeiro e Segurança Pública: ‘Não sei se é fascismo ou farsismo’



ESCRITO POR GABRIEL BRITO E VALÉRIA NADER, DA REDAÇÃO
09-DEZ-2010

Após mais uma onda de violência na cidade do Rio de Janeiro, o Brasil se deparou com um espetáculo deprimente de suas mazelas sociais e humanas. Após traficantes desceram ao asfalto, promovendo assaltos e queima de veículos, por razões ainda pouco esclarecidas, novamente a cidade se viu em pânico. Situação inflada pela cobertura espetacularizada da grande mídia, que por sua vez endossa sem parar as políticas fracassadas de mera repressão à ponta pobre do tráfico, isto é, nos morros.

Em entrevista ao Correio da Cidadania, a socióloga Vera Malaguti, secretária geral do Instituto Carioca de Criminologia (ICC), criticou duramente os governos estadual e federal, especialmente em relação à entrada das forças armadas na questão, de legalidade questionável. "Tudo é ilegal aqui. Estamos vivendo em regime de exceção", afirmou, referindo-se também às violências cometidas contra moradores inocentes das áreas invadidas pelas forças oficiais.

Para ela, tal processo é parte de uma política de ocupação de áreas pobres, idealizada pelos EUA há décadas, que visa também garantir um controle militarizado da vida das pessoas, além de abrir caminho para "os negócios transnacionais e olímpicos".

Malaguti questiona firmemente a política de segurança do governo Cabral, por considerar as UPPs - Unidades de Polícia Pacificadora - e toda a recente operação mais uma ação de marketing, baseada nas mesmas políticas de repressão sem investimento social, amplamente fracassadas.. "Estão ocupando a cidade. Para que fluam os grandes negócios transnacionais e esportivos. Para que as pessoas possam fruir sem serem incomodadas pela nossa pobreza".

A entrevista completa, na qual Vera não poupa nem o ex-secretário Luiz Eduardo Soares ("ele é um pouco responsável pela glorificação do BOPE como solução"), cujas análises foram elogiadas por setores progressistas, pode ser conferida a seguir.

Correio da Cidadania: O apaziguamento do clima de guerra que se instalou no Rio, a partir da colaboração do Exército e da Força Nacional de Segurança na expulsão dos traficantes do Morro do Alemão, levou a um clima de euforia entre a população, seguido pela maior parte da mídia. Como encara, nesse sentido, as ações imediatas que foram tomadas pelo governo nos últimos dias para controlar a crise?

Vera Malaguti: Estranhei muito. Eu penso que a euforia foi fruto de uma campanha midiática. Gosto de falar com base em evidências, mas desde o início considerei muito estranhos os acontecimentos. Comparando com aquela vez em São Paulo, em 2006, quando a cidade parou, na hora em que o governo decidiu mobilizar as forças armadas, ainda se teve uma meia dúzia de carros queimados, mas nenhuma vítima.

Tudo foi engatilhado de um jeito que pareceu muito estranho. Se formos ver a análise da mídia, como a da Folha, que dessa vez foi mais crítica, vê-se que existia uma combinação com a Rede Globo, tanto que na véspera eles anunciavam o ‘Tropa de Elite 3’, e no dia seguinte transmitiram aquilo o dia inteiro.

Diante do que acontecia, creio que a reação foi desproporcional em relação ao ocorrido, e aí não entendemos de fato como foram as coisas. Seriam 600 homens, ou não? As apreensões mostradas também não fazem muito sentido, porque o envolvimento das forças armadas em tais situações é muito questionado no mundo inteiro.

Os EUA, por exemplo, proíbem suas forças armadas de trabalharem como polícia. No entanto, estimulam muito que as forças armadas latinas entrem nesta guerra perdida, como no caso do México, grande exemplo disso.

Desde 94, quando da operação Rio 1, as conversas com o Comando Militar do Leste sempre receberam a recusa das forças armadas brasileiras, por ser algo perigoso. Da mesma forma que a polícia se desmantela nessa guerra sem fim, as forças armadas, que na verdade são responsáveis pela nossa soberania, poderiam passar pelo mesmo. Atirá-las nessa guerra perdida é uma aventura. As forças armadas norte-americanas não entrariam nessa jamais.

Portanto, creio que foi um ato midiático, como tudo que é feito pelo governo do estado do Rio de Janeiro. Só que desta vez o governo federal embarcou na aventura, a meu ver de forma muito irresponsável, correndo o risco de colocar as forças armadas brasileiras num impasse geopolítico.

Correio da Cidadania: Mas no momento específico, e diante da dificuldade da polícia carioca no enfrentamento frontal ao tráfico dos morros, a presença do Exército, assim como da Marinha e Aeronáutica, não seria necessária como medida emergencial?

Vera Malaguti: Em 2006, em São Paulo, aconteceu algo muito mais grave, muito mais profundo, e as forças armadas nem foram cogitadas. Quando entraram, tinha-se meia dúzia de carros queimados e nenhuma vítima. Na França, é normal queimarem 300 carros num protesto, e o exército francês nunca entrou pra interferir. E nunca considerou esses atos terrorismo, e sim manifestação.

Acho que tudo faz parte de uma escalada do modelo norte-americano de ocupação. Inclusive saiu uma entrevista do ministro (da Justiça, e futuro governador do Rio Grande do Sul) Tarso Genro no Página 12, da Argentina, na qual os jornalistas se assustaram com as declarações dele, pois tinham um jargão bélico constante.

Ao mesmo tempo, é um modelo fracassado, pois os EUA estão perdendo a guerra no Iraque nessa acepção.

Correio da Cidadania: Fracasso da guerra às drogas também.

Vera Malaguti: Exatamente. A guerra às drogas já virou um mico mundial. Portanto, essa escalada do Rio de Janeiro me parece fazer parte do processo que mencionei. Já tivemos a chacina do Pan, também no Alemão. É algo muito midiático, e também perigoso, por ser uma escalada bélica.

E agora, miraculosamente, acabou tudo, está tudo calmo. O que acontece no Rio de Janeiro de verdade? Acho que ainda faltam elementos para afirmarmos algo com responsabilidade, mas me pareceu tudo muito rápido e alinhado à Globo. Parecia tudo parte dos efeitos Tropa de Elite. Tanto que na véspera do ‘Dia D’, a manchete do O Globo era ‘Tropa de Elite 3’. E depois houve aquela cobertura toda, enquanto do lado de lá se viam escombros, tanto que houve várias comparações com Canudos.

E o day after é aquilo que a gente conhece sempre, a história de invasões da polícia às comunidades faveladas.

Correio da Cidadania: Na invasão do Alemão, em 2007, durante o Pan, foi a mesma coisa, e nem o tráfico de drogas, nem o controle armado do território por criminosos foram, no entanto, até hoje eliminados. Pelo contrário, estamos novamente diante do mesmo morro, agora com uma ocupação ainda mais extensa, a partir da participação direta da Força Nacional de Segurança, da Polícia Federal, do Exército, Marinha e Aeronáutica. Trata-se da persistência inócua e equivocada de uma política de ocupação, não?

Vera Malaguti: Sim. Os moradores sendo humilhados, torturados, tendo suas casas roubadas, reviradas, aquilo que a gente conhece. Agora com o agravante da glorificação de uma polícia militarizada, um efeito perverso que enxerguei nos filmes Tropa de Elite, e que me parece formar esse todo, de glorificação da força militar.

O saudoso coronel Carlos Magno Nazaré Teixeira, assassinado em 99, policial militar com formação humana, profunda, crítica, escreveu um artigo intitulado ‘A remilitarização da segurança pública’. É, de fato, um processo. O Brasil aderiu agora; e, surpreendentemente, a partir do governo federal.

Correio da Cidadania: Esse cenário não tem sido construído, com a ajuda da mídia, como forma de criar uma legitimação para a Copa e as Olimpíadas? A força militarizada não serve pra sufocar os gritos contrários?

Vera Malaguti: Com certeza. Além disso, abrir caminho também para os grandes negócios transnacionais. Crime organizado é isso aí. Esses negócios olímpicos e transnacionais fazem parte da estratégia de ocupação das áreas pobres. É mais um capítulo dos ‘muros ecológicos’, ‘paredes acústicas’, que vão murando e isolando as áreas pobres. Depois, as pessoas falam que é uma alternativa. Não, não é uma alternativa ao modelo, e sim seu aprofundamento, chegando agora na ocupação militarizada das favelas.

Eu chamo de gestão policial da vida. Pra fazer uma festa tem que pedir autorização. Por isso, creio estarmos diante de um projeto de ocupação militarizada nas áreas de pobreza do Rio de Janeiro, com uma cobertura vergonhosa da grande mídia.

O Loïc Wacquan escreveu artigos como ‘Punir os Pobres’, ‘A Penalização da Miséria’, mas um em especial chama a atenção: ‘Da Penalização à Militarização’. Durante esses dias, ele me mandou uma mensagem perguntando isso: "Vera, estou vendo tudo pela TV. É aquilo mesmo, da penalização à militarização?". Acho que é exatamente isso. Demonizam-se algumas atividades em certas regiões, depois se criminaliza e se entra com tudo no lugar em questão. É o que também chamamos de indústria do controle do crime, é uma modalidade de economia. As próprias forças armadas, em parte, resistem a isso.

Mas como parece que nosso ministro da Defesa gosta de trocar inconfidências com ministros americanos, como vazou o Wikileaks, vimos que os EUA queriam saber se o Rio de Janeiro poderia sofrer terrorismo e que lhes interessava vender-nos tecnologia para tal combate.

Correio da Cidadania: Não só vender equipamentos, como até editar uma lei antiterrorismo, como também foi vazado.

Vera Malaguti: Tudo o que acontece são tecnologias de guerra sendo vendidas. Os jornais mostravam os blindados, a polícia dizia que gostava... Enfim, estamos comprando as sucatas das derrotas dos EUA no Iraque e no Afeganistão.

Correio da Cidadania: De Israel também, haja vista que o Brasil, e especialmente o Rio, é um grande cliente dos israelenses no mercado de armas, não?

Vera Malaguti: Certamente. Israel é o grande parceiro das vendas de serviços e tecnologia nessa área. Mas antes é preciso construir o discurso do inimigo, o que o grande jurista argentino Zaffaroni chama de ‘direito penal do inimigo’. As garantias vão sendo suspensas, prendem-se os familiares, advogados. Ou seja, estamos vivendo no Rio um Estado de Exceção. Não vi nenhum morador dessas áreas aplaudindo. Como também nunca vi morador elogiar UPP, apenas vejo a mídia dizer que eles aprovam. Na cobertura do day after, só vi morador se sentindo humilhado, violentado, esculachado, roubado... A história de sempre, desde Canudos.

Não sei se o nome adequado é fascismo ou farsismo.

Correio da Cidadania: Já vêm soando rumores de que o Exército poderia permanecer nas áreas conflagradas por tempo maior que os cerca de 8 meses inicialmente cogitados, fincando suas bandeiras nessas áreas até a Copa do Mundo. Ao lado do comentado risco de contaminação do Exército pelo tráfico, uma permanência tão estendida é a prova cabal da política de militarização imposta pelos EUA, não?

Vera Malaguti: Eu acho um perigo para a soberania nacional colocar as forças armadas nessa guerra perdida. E digo mais: não me parece que a situação do Haiti seja bonita, onde nossas forças armadas comandam uma ocupação. Como está lá? Nossas forças armadas vão se transformar em polícia de contenção de pobreza absoluta? Eu acho uma tristeza, além de um precedente perigoso.

E tem ainda o circo das ONGs: a Viva Rio, que aqui no Rio é chamada de ‘Viva Rico’, esteve lá no Haiti. Vai participar aqui também?

Tirar as forças armadas de seu papel, de garantir a soberania nacional, é o sonho dourado dos EUA. As forças armadas deles não entram jamais numa empreitada dessas, mas eles recomendam a todos os outros que o façam.

O governo Lula aderir a isso é uma vergonha.

Correio da Cidadania: Sem contar a sensível questão acerca da legalidade de tal atuação, muito questionável.

Vera Malaguti: Tudo é ilegal aqui. Estamos vivendo em regime de exceção, tudo é ilegal. Desde a inviolabilidade do lar até a gravação das prisões de advogados, fora outras coisas que já citamos.

E a OAB do Rio já apoiou a operação desde o começo. Em vez de ficar na trincheira de luta, observando se as garantias constitucionais estão sendo levadas em conta, já entrou apoiando, como também o fez na operação de 2007 no Alemão.

E a atuação da grande mídia...

Correio da Cidadania: Parece que estão transmitindo mais uma atração dominical.

Vera Malaguti: Exatamente. E com a glorificação da truculência, da militarização. É de fato a glorificação da figura do Capitão Nascimento.

Correio da Cidadania: Fora o massacre ideológico, com as mesmas figuras defendendo por horas e horas todas as ações, com as mesmas idéias de sempre, que, como você já disse, só acumularam fracassos.

Vera Malaguti: É uma cobertura que serve muito mais para as pessoas não entenderem o que acontece. E, no final, os resultados são pífios. Cadê os 600 homens, cadê as armas? Aparece uma bazuca aqui, outra ali...

Sinceramente, acho que, se olharmos bem, vamos ver que as forças armadas, polícias civil, militar, fizeram um fiasco, prendendo um monte de pé rapado. Não há novidades no front.

Correio da Cidadania: Qual a sua avaliação quanto à política das UPPs no Rio de Janeiro, tanto no que se refere ao conceito e objetivos que lhes dão sustentação, como à forma pela qual vêm sendo conduzidas?

Vera Malaguti: É parte de todo esse jogo. É uma obra de arte midiática, uma peça de marketing. O governador do Rio é expert nisso. O Rio tem o maior investimento em segurança pública e está em penúltimo no ranking da educação de todo o país.

Se pegarmos o que o governo do estado investe em marketing... As UPPs são mais uma peça publicitária, parte dessa militarização da segurança pública, por se tratar de uma ocupação militar, na qual os moradores são obrigados a se submeter a tudo, até a pedir permissão pra fazer uma festa. Além de significar a glorificação da gestão policial da vida - dos pobres, é claro.

E a prefeitura, cujos integrantes participam do mesmo projeto político, entra com o Choque de Ordem, que busca tirar todas as estratégias de sobrevivência dos pobres na rua. Mas, ao mesmo tempo, as ruas do Rio são invadidas por empresas transnacionais.

Portanto, o camelozinho pobre não pode botar suas bugigangas na Vieira Souto. Mas no fim de semana retrasado um laboratório francês, enorme, estava lá com container, fazendo exames de câncer de pele e distribuindo filtro solar.

Correio da Cidadania: Fazendo exames e, claro, uma belíssima ação de marketing.

Vera Malaguti: É. A empresa pode. Mas as estratégias de sobrevivência dos pobres, criadas pelo povo, não. Essas são demonizadas e criminalizadas. Agora, a ocupação militar. Uma vergonha. Mesmo com todas as críticas que tenho, nunca esperava um papelão desses do governo federal, que entrou na jogada.

Correio da Cidadania: O sociólogo Luiz Eduardo Soares adverte que sem ir à raiz da relação promíscua entre policiais e traficantes as UPPs não têm chance alguma de sucesso, visto que seriam contaminadas pelo mesmo esquema de corrupção.

Vera Malaguti: É, pode ser, mas o Luiz Eduardo Soares é um pouco responsável, é o criador do Capitão Nascimento, o novo herói nacional.

Tenho uma posição muito crítica em relação à produção do Luiz Eduardo Soares. Ele é um pouco responsável pela glorificação do BOPE como solução. Mas ele alterna também. Está esperando a polícia ficar limpa no capitalismo... Vai ter que esperar um bocado.

Ninguém está limpo no capitalismo, mas quem está menos limpo é a sociologia fluminense, que está toda inserida no mercado, nossa! Na cobertura, apareciam todos apoiando a operação. Inclusive ele, na última entrevista, disse: "sou a favor da repressão, mas...".

Portanto, tenho uma visão muito crítica a ele especificamente, pois acho que os Tropas de Elite 1 e 2 tiveram esse efeito perverso. Tanto que o ápice do 2 é a tortura do político corrupto. E a tortura é a estrela dos dois filmes. Por isso, acho-o muito responsável pelo que culminou com o Globo chamando toda a história de ‘Tropa de Elite 3’.

Correio da Cidadania: Mas o que pensa dessa relação promíscua entre policiais e traficantes, assim com de seu impacto sobre as UPPs?

Vera Malaguti: Acho que o proibicionismo, a política criminal de drogas dos EUA, à qual aderimos desde a ditadura, produz esse resultado, razão pela qual as forças armadas não podem entrar, pois vão se desmantelar.

Não é um problema moral, e sim de escolha política que se faz. Quanto mais repressão, maior custo. E políticas que não legalizam o segundo emprego do policial, jogando-o na ilegalidade, só contribuem ainda mais.

Não é uma questão moral das polícias, mas uma questão econômica, dentro de um capitalismo selvagem.

Correio da Cidadania: O mesmo sociólogo há algum tempo tem ressaltado que o tráfico armado, tal qual se apresenta hoje, é um modelo em processo de extinção - não devido à existência das UPPs, mas em função de sua estrutura pesada e custosa, tendente, portanto, a caminhar para formas mais sofisticadas de crime organizado. As milícias tão preponderantes hoje no Rio, cujos membros são em grande parte policiais, seriam uma dessas modalidades mais ‘atualizadas’ do crime organizado. Diante do que se viu no Rio, você comunga dessa avaliação, de que o tráfico armado nos moldes atuais esteja realmente em extinção no Rio?

Vera Malaguti: Acho que ainda não tenho, nem ele, elementos para afirmar isso. Pierre Bourdier criticava muito o que chamava de fast thinker. Aqueles caras que a grande mídia sempre procura. Pode ver que a grande mídia procura sempre os mesmos. É uma penca, não vou citar nomes. Pra você dizer algo assim, tem que se fazer uma pesquisa, se aprofundar, mas para a Globo News eles sempre sabem tudo já na hora dos acontecimentos.

Eu sou uma slow-thinker. Não tenho elementos para confirmar essa teoria ainda.

Correio da Cidadania: Mas, de toda forma, as milícias têm sido um braço fortíssimo do crime organizado, até com mais tentáculos, e sem combatê-las não vai adiantar absolutamente nada, no final das contas, eliminar somente os comandos tradicionais.

Vera Malaguti: Claro. Estranhamente, o governo estadual resolveu combater somente uma das empresas do comércio varejista de drogas. Qualquer pessoa com o mínimo de inteligência, conhecendo o mercado, sabe que em caso de se partir pra cima de alguém em seu espaço, retirando-o de lá, tal espaço será ocupado por outra empresa. Mais uma vez, todo esse aparato foi pra cima de uma das empresas. Estranhamente, as outras (milícias) têm uma relação maior com a polícia. Natural.

Houve um momento em que todo mundo dizia que as milícias eram autodefesa ao narcotráfico. Deu no que deu. As milícias cresceram, primeiro sendo glorificadas, e agora fica tudo meio embolado.

Correio da Cidadania: O que pensa sobre o modelo de polícia hoje existente? Quais seriam, a seu ver, as políticas públicas e medidas que, a médio e longo prazos, realmente incidiram sobre este modelo de modo a enfrentar o tráfico e a violência em uma cidade como o Rio de Janeiro?

Vera Malaguti: Primeiramente, acabar com o proibicionismo, ou seja, a política proibicionista norte-americana. E, claro, as velhas políticas públicas: escola pública de tempo integral, saúde, enfim, todo o universo da agenda que perdemos, porque agora nossa agenda é só segurança pública, ela vem na frente de tudo.

Em terceiro lugar, o protagonismo da juventude popular, pois uma das coisas que a criminalização das estratégias de sobrevivência faz é também criminalizar a potência juvenil, popular, transformando-a em bandidagem.

Precisamos recuperar os movimentos políticos que dão potência e protagonismo à juventude popular. E não demonizá-los, criminalizá-los e agora aniquilá-los.

Correio da Cidadania: E o que pensa sobre o atual modelo de polícia?

Vera Malaguti: É o mesmo de sempre. É a história da polícia do Brasil. Começou para erradicar quilombos e assim continua. Erradicando e ‘pacificando’ quilombos. Não mudou nada.

Correio da Cidadania: Para evitar questionamentos quanto à política salarial e ao orçamento público, o governo faz a citada vista grossa para várias ‘ilegalidades’, como os bicos feitos por policiais de modo a incrementar seus ganhos - bicos que, em função do mencionado ‘proibicionismo’, estão na raiz do tráfico e da formação de milícias. Diante desse cenário todo, seria possível lidar com a situação atual, de modo a que a raiz da degringolada fosse de fato enfrentada, sem um novo enfoque para as políticas públicas, e sem, ademais, um novo olhar para a cidade?

Vera Malaguti: O Luiz Eduardo, por exemplo, gosta de vender modelos de segurança. Acho que o modelo de segurança é algo que precisa ser construído coletivamente. E utopicamente também.

Toda cidade que precisa de muita organização policial tem algo de muito errado. As cidades seguras são aquelas que precisam de pouca polícia.

A desigualdade social, a brutalização da pobreza, essas medidas compensatórias, que aprofundam os nexos da desigualdade... Precisamos construir um modelo de felicidade para a cidade, no qual a segurança seria a última prioridade. Porém, não acredito nisso.

Estamos voltando à República Velha, época em que, quando se pensava na questão social, pegava-se um revólver. Estou me sentindo na República velha, quando as questões sociais eram resolvidas pela polícia.

Precisamos de menos polícia, menos prisão, mais beleza, mais cultura, mais alegria, mais potência juvenil e popular, protagonizando as coisas.

Correio da Cidadania: Finalmente, como vislumbra que o futuro governador do Rio, assim como a futura presidente do Brasil, vão lidar com o tema da Segurança Pública?

Vera Malaguti: Olha, estou morrendo de medo dos dois. A perspectiva é sombria. E como o ministro da Defesa será mantido... Parece que estaremos bem com as embaixadas americana e israelense.

Correio da Cidadania: Podemos, dessa forma, imaginar uma intensificação desse modelo militarista de mediação social?

Vera Malaguti: Estão ocupando a minha cidade. A linda, insubmissa e rebelde cidade do Rio de Janeiro. Para que fluam os grandes negócios transnacionais e esportivos. Para que as pessoas possam fruir sem serem incomodadas pela nossa pobreza. Essa é a minha triste impressão dos acontecimentos.

Como eu disse, não sei se é fascismo ou farsismo.

Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania; Gabriel Brito é jornalista.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A surda guerra oculta

Nossa cidade mais bonita, que era o encanto dos brasileiros nas décadas de 40 e 50, não resistiu à emergência da pobreza

04 de dezembro de 2010 | 16h 00

Francisco de Oliveira

A celebração quase unânime do assalto das forças estatais aos morros da Vila Cruzeiro e Complexo do Alemão revela mais de nossa sociedade, dos impasses da política e do exercício do poder do que as firulas do PMDB e o negaceio do PT em torno da formação do governo da presidente Dilma.

Sob o mantra do combate ao crime organizado, o que se oculta é uma surda guerra de classes na outrora charmosa e agora ultraperigosa Cidade Maravilhosa. Essa guerra explode de tempos em tempos nos "bondes" (o termo é aplicado aos bandidos) das forças repressivas, levantando apenas a ponta do iceberg. Na verdade, nossa cidade mais bonita, ao lado de Salvador, que fazia os encantos dos brasileiros nas décadas de 40 e 50 do século passado, não resistiu à emergência da pobreza rude e sem eufemismos, como aqueles que cantava Sílvio Caldas em seu Favela.

Por mais maquiagem que as teles imprimam aos seus jornais, mesmo os mais realistas, como o do senhor Datena na Band, o desfile que se vê é menos o das tropas que no resto do ano não têm o que fazer, salvo patrulhar o Haiti, que é um Rio mais pobre e menos charmoso, e mais o de pessoas pobres, na maior parte das vezes pobremente vestidas ou pelo menos decentemente pobres, cujo calçado não passa de uma sandália havaiana falsificada. Por trás das câmaras, o rancor surdo das outras classes sociais, e sem pieguice, a resistência feroz, que se transforma periodicamente em ataques ainda mais ferozes, de uma parcela dos pobres que se transformou em traficantes, já que a civilização capitalista brasileira não lhes oferece outros meios de sobrevivência.


O aplauso de vastas porções da população do Rio apenas confirma que se trata de um ódio rancoroso; e, se enquetes forem realizadas em outras cidades, não tardará a aparecer um clamor público, já insinuado pelas autoridades, para que a façanha criminosa do Estado no Rio seja replicada em outros lugares do nosso País. A população viu, agora ao vivo e em cores, o reality show do Capitão Nascimento subindo o morro com o Bope; aliás, os que vivem nas favelas já se acostumaram a isso. Desta vez a vida ganhou da arte: mesmo oTropa de Elite 2, cujos mais de 10 milhões de espectadores atestam o fascismo no ar, perdeu feio para a violência estatal em nome da lei. Se no capítulo da economia o capitalismo periférico açulado até a exasperação pelo governo Lula mal consegue se manter dentro dos limites da lei - porque a regra é enriquecer às custas do fundo público de qualquer maneira -, no capítulo da violência esperava-se apenas um evento mais provocador para soltar os cães da repressão sem nenhuma homenagem do vicio à virtude. O episódio mais antigo do PCC em São Paulo já havia quase provocado essa explosão de alegria do ódio reprimido.

Agora, o Rio deixou à solta os cães de aluguel. Ninguém se engane: por trás das fachadas engalanadas do Brasil do futuro que já chegou nas prateleiras das Casas Bahia, vive uma sociedade esgarçada, forçada a correr atrás do êxito a qualquer preço, liquidando sem juros qualquer valor civilizatório, que a muito custo conseguimos erguer depois da barbárie da ditadura militar.

Nenhum cientista social conseguiria ser mais contundente e mais preciso para diagnosticar a sociedade brasileira que essa crise apenas localizada no Rio. Está nas livrarias Hitler, do historiador britânico Ian Kershaw. Qualquer semelhança das brigadas que percorriam as ruas de Munique nos anos 20 com a subida aos morros e a reação dos traficantes no Rio não é coincidência: no ar, esse sentimento de insegurança, parente próximo do fascismo, rapidamente acende o rastilho de pólvora das relações de mercado não mercantilizadas, que são a raiz da pobreza no Brasil, e se transforma na violência mais desenfreada. A situação brasileira, de que o Rio é o emblema, pelos aplausos generalizados, pelos milhões de espectadores do Tropa de Elite 2, e no fim, mas não menos importante, pela presteza da Marinha em atender ao pedido do governo do Rio, parece que pede um ditador com punho de ferro. Felizmente, por ora, não tem nenhum candidato, não saímos de uma derrota militar severa, não derrubamos uma velha monarquia, nem há uma Grande Depressão. Há uma satisfação tola no ar: já realizamos a sexta eleição direta para presidente da República e estamos consolidando a democracia. Estamos? Não há "titio Adolf" à vista, mas não provoquemos a história; ela costuma responder à violência com violência.

Francisco de Oliveira é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP