terça-feira, 10 de fevereiro de 2009

Obama: quando a superstição duela com a realidade




José Martins




As esperanças em Obama dão de cara com a realidade da crise mundial do capitalismo.

Tomou posse, finalmente, “o primeiro presidente negro dos Estados Unidos”. A superstição, essa perfeita realização do idealismo burguês, atingiu níveis recordes de audiência. O culto global destes últimos meses à capacidade sobrenatural de um “grande homem” resolver os problemas do mundo (muito mais que o mago inglês Gordon Brown) é uma prova mais que suficiente da nossa tese que o modo de produção capitalista é a era do cálculo e da superstição. Já comentamos em outro boletim o suficiente para caracterizar o papel dessa figura absolutamente medíocre que atende pelo nome de Barack Hussein Obama*.

Além da superstição

Apenas um pequeno comentário a mais, além da cerimônia oficial da pomposa posse – na forma totalitária tradicional de mobilizações de grandes massas e discursos vazios de “grandes homens”, esta última ainda muito pior produzida e menos interessante do que as que faziam os departamentos de propaganda de outros “grandes homens” como Hitler, Mussolini, Perón, Getúlio... Acontece que agora é avassaladora a concentração de poder em uma única potência e a força atual da mídia é mil vezes maior que naquela época de totalitarismos bem mais ingênuos que os de agora.

É por isso que mais assustador ainda do que as cerimônias goebbelianas** da posse do “primeiro presidente negro dos EUA” foi como se produziu uma campanha midiática global de restauração dos “valores americanos”, da recuperação do “destino manifesto” dos EUA de levar a todos os cantos do mundo (com filmes de Spielberg ou com mariners, pouco importa) os seus sagrados valores políticos: liberalismo, individualismo, democratismo e... capitalismo. Presencia-se uma feroz tentativa burguesa de recuperação do “soft power”*** do império americano, seriamente danificado com as sapatadas iraquianas em Bush (ou no império americano?).

Esse é o lado real da coisa. Além da superstição do espetáculo esconde-se a necessidade premente de reorganização do poder imperialista de organizar a guerra e garantir a governança global. Mas isso não basta. Há uma coisa muito mais real (e mais do que imediata) a ser enfrentada. Redobrem a superstição, pois vão assistir cenas muito chocantes.

O mundo não pára!

Obama é a superstição. A crise econômica é a realidade. Alguém arrisca um palpite? Do mesmo jeitinho que o renegado George W. Bush, seu antecessor odiado pelo povo, Obama consegue de joelhos no Capitólio que os deputados aprovem mais um pacote para ativação da economia de aproximadamente $800 bilhões de dólares. Falta agora o Senado aprovar. Deve conseguir. Mas será mais difícil que na Câmara. Não bastará se ajoelhar, ele terá que beijar as botas dos senadores. A aura de “grande homem” ficará seriamente profanada. Mais cedo que se imaginava. Neste ritmo logo vai ter cidadão americano chamando “o primeiro presidente negro dos EUA” de Bush 2º.

Tem mais. A reação dos capitalistas dos outros países do mundo reunidos em Davos, Suíça, no Fórum Econômico Mundial, foi verdadeiramente raivosa ao saberem que no pacote de Obama havia um parágrafo altamente protecionista à indústria dos EUA: todo aço e outros equipamentos a serem consumidos nas obras de infraestrutura previstas no pacote devem ser comprados de siderúrgicas e indústrias estadunidenses.

Frente à raivosa reação do exterior (até Macunaíma da Silva chiou em Brasília, fazendo uma fervorosa defesa do livre comércio) Washington já deu sinais que recuará nesta pegadinha protecionista de Obama. Pegou mal. Muito mal. Assim, também no estrangeiro a imagem de “grande homem” sairá prejudicada. Precisa carregar mais no Soft Power, senão até o presidente do Suriname vai estar logo procurando um bom lugar na fila para dar a sua sapatada no “primeiro presidente negro dos EUA”.

O tamanho da trolha

O último pacote de Bush (houve outros anteriores) era mais ou menos do mesmo valor que este de Obama. Não deu grandes resultados. Por que? Há que se levar em conta o tamanho da trolha a ser desativada: o Produto Interno Bruto (PIB) dos EUA desabou 3.8% no quarto trimestre de 2008, noticiou dia 30/01/09 o Departamento do Comércio daquele país, salientando no relatório que essa é a maior queda do PIB em um único trimestre desde 1982. A nossa (da Crítica) perspectiva é que neste 1º trimestre (janeiro-março) o PIB leve um tombo de aproximadamente 6% anualizados. Que Marx nos ouça!

Seria uma aceleração catastrófica. Já analisamos dados no boletim anterior (ver aqui) que demonstram uma clara tendência ao derretimento da indústria dos EUA. São esses dados que puxam o PIB para baixo e balizam (além de outras considerações) aquela nossa previsão para o PIB no 2º trimestre. Com base nestes dados da indústria fizemos também uma arriscada (mas não exagerada) previsão de que se o ritmo de derretimento atual da indústria americana não for imediatamente estancado, e desde que a taxa de utilização da capacidade instaladataxa de desemprego nos EUA, que agora deve girar em torno de 7.5 e 8%, em dezembro de 2009 poderá se situar entre 25 e 30% da força de trabalho. Que Marx nos ajude (e muito)!

A indústria derrete

Exagero da nossa parte? Talvez. Mas veja o que está a acontecer, por exemplo, na Espanha. Dados do Instituto Nacional de Estadísticas (INE) do governo espanhol indicam que a taxa de desemprego do país pulou de 11.3% da população economicamente ativa no 3º trimestre de 2008 para 13.9% no 4º trimestre de 2008. É muita velocidade. Superou pela primeira vez a marca de 3,2 milhões de desempregados. Desde dezembro de 2007, o número de desempregados aumentou 1,3 milhão. Quer dizer, a massa de desempregados aumentou cerca de 60% em doze meses. O até recentemente festejado boom econômico espanhol que durou dez anos precisou de menos de seis meses para entrar em fulminante colapso.

É evidente que a economia espanhola tem suas diferenças com a dos EUA. Mas até aí morreu o Neves. É preciso justificar as afirmações. De todo modo, o que vai deixá-las mais parecidas do que em situações normais é justamente o possível (e cada vez mais provável) derretimento da indústria global.

Mas o que vai acontecer nos EUA não precisa de paralelos externos. Os demais países do mundo é que devem se preocupar com o paralelo da economia de ponta do sistema. Nos EUA deve ocorrer colapso possivelmente maior que o espanhol. Só no mês de dezembro passado as empresas cortaram 524 mil trabalhadores, para o total de 2,6 milhões cortados durante o ano de 2008. Cortaram em um único mês (no último do ano) cerca de 20% do total cortado no ano. Quer dizer, a velocidade do corte de empregos está se acelerando. Velocidade máxima.

Veremos neste mês de janeiro aceleração ainda maior – segundo a bloomberg.com “mais cortes estão acontecendo neste mês. Kodak, Target e Texas Instruments estão entre as empresas que anunciaram milhares de cortes nesta semana. PPG Industries Inc., a segunda maior fabricante mundial de equipamentos de pintura de carro, declarou nesta semana que deve cortar no mínimo 4500 trabalhadores, ou 10% da sua força de trabalho”. Em entrevista à Bloomberg, dia 27 de janeiro 2009, declara o diretor presidente da PPG Industries: “Provavelmente estamos assistindo a mais impetuosa desaceleração que qualquer um que trabalha em nossa companhia tenha visto.” Continua a matéria: “O desmoronamento (slump) da economia dos EUA se intensificou no último trimestre e as empresas se trancaram. Investimentos em bens de capital caíram ao ritmo de 19%, o maior desde 1975. Compra de equipamentos e software caíram ao ritmo de 28%, o maior em meio século” (30/01/2009).

E assim será até o fim deste ano. A maioria das empresas, segundo a Bloomberg.com, planeja cortar proximamente entre 10 e 12% dos seus quadros de funcionários. Faça as contas.

A trolha é global

Ninguém escapa. Veja o que se passa na segunda maior economia do planeta: “Com o afundamento da produção industrial em nível recorde, a deflação como um risco real e o maior aumento do desemprego em 42 anos, o Japão segue para uma profunda recessão, talvez a pior desde o final da 2ª Guerra Mundial. Completando o quadro, os grupos NEC e Hitachi anunciaram nesta sexta-feira a supressão de 27 mil postos de trabalho. O governo japonês divulgou nesta sexta-feira dados muito desalentadores de produção industrial, desemprego e Índice de Preços ao Consumidor (IPC) piores que o previsto para uma economia que já está oficialmente em recessão e para a qual se prevêem tempos ainda mais difíceis. Especialmente o resultado da produção industrial, uma queda de 9,6% - a maior desde 1953 – indica tempo ruim, pois significa que as fábricas japonesas cortarão ainda mais a produção, atingindo também o crescimento econômico e o emprego. Para janeiro, o governo prevê uma queda de 9,1% da produção industrial e um pouco menos, 4,7%, para fevereiro.” (Último Segundo, IG).

A podridão do sistema moribundo é o laboratório da vida. Não faltam cenas chocantes pelo mundo afora, como essas que retransmitimos dos EUA, Espanha e Japão. Não temos condições de listar tudo o que se passa em todos os países. Mas ninguém duvide que todos estejam envolvidos no redemoinho da crise. É por isso que ninguém pode afirmar que estamos exagerando em nossas avaliações para a economia global neste ano. Quem está exagerada é a realidade. Felizmente.

Mas os capitalistas e todos seus supersticiosos fiéis espalhados pelo mundo estão firmes na fé que serão salvos do apocalipse que se anuncia. Afinal, eles acabam de produzir e dar posse a um “grande homem” que vai guiá-los pelo deserto e salvar do desmoronamento essa podridão material que eles amam cegamente. Mas no meio do caminho existe uma pedra: a despudorada realidade material dança na rua loucamente no meio do redemoinho com cenas irrefutáveis (embora chocantes) demonstrando que os dias dos seus “grandes homens” estão contados. Aleluia!


* Ver “Obama: a realidade fala mais alto que o espetáculo” 3ª sem. Novembro 2008. Não vamos também aqui cair na tentação de explicar por quê pessoas tão inteligentes como o escritor Philip Roth, o professor de física teórica Marcelo Gleiser e tantos outros acreditam que “o primeiro presidente negro dos EUA” pode mudar o mundo. Como explicar essa crença de pessoas inteligentes no mito dos “grandes homens”? Mesmo Hegel, o grande filósofo alemão, ficava fascinado com a passagem de Napoleão pela Prússia comandando seu exército em direção à Rússia. Também não era Hegel que via o Estado como a manifestação de Deus na terra? Mas não se faz mais Napoleões (nem ideologias) como antigamente. Só a superstição, essa forma do idealismo plenamente desenvolvido do século 21, permite acreditar na capacidade sobrenatural de um indivíduo medíocre, conservador, que nunca escreveu nada, nunca falou nada, nunca fez nada que fosse verdadeiramente interessante. Vire e revire o discurso de posse do “primeiro presidente negro dos EUA”. O ponto alto destacado pela mídia foi uma frase que teria a mesma força do “eu tenho um sonho” de Martin Luther King. Veja (e ame, se for capaz) a frase do novo grande líder: “Vocês vieram por acreditar no que este pais pode ser e vão nos ajudar a chegar lá”. Não é uma coisa linda? Será que Philip Roth também ficou emocionado?

** Referente a Joseph Goebbels, Ministro do Povo e da Propaganda de Hitler, na Alemanha.

*** Soft Power quer dizer, na linguagem das relações internacionais, força (ou poder) de hegemonia e dominação de idéias forjadas e valores culturais de um determinado Estado nacional sobre outros. Complementa e sempre acompanha, necessariamente, o hard Power, a capacidade militar propriamente dita.

* Este texto foi publicado no boletim Crítica Semanal da Economia.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

O próprio capitalismo esgotou o discurso neoliberal'. Entrevista especial com Luiz Filgueiras

especial com Luiz Filgueiras

“Essa crise é a maior de todas, porque não é apenas uma crise cambial de um país de periferia, que sofreu um ataque especulativo e os capitais começaram a sair, mas essa é uma crise do centro do sistema capitalista, a partir de um país hegemônico. Por isso, ela é gravíssima e continua se espalhando pelo mundo”, afirmou o economista Luiz Filgueiras, em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line. Para ele, essa crise é ainda mais profunda do que a crise de 1929, que também abalou a estrutura financeira, cultural e moral dos Estados Unidos. Filgueiras argumenta que foi o próprio sistema capitalista, incentivado pelos governos estadunidenses, que gerou esse colapso e, portanto, será preciso criar um novo sistema para solucionarmos esse problema econômico.

Luiz Filgueiras é graduado em Ciências Econômicas pela Universidade Federal da Bahia, onde também realizou o mestrado em Economia. É doutor em Ciência Econômica pela Universidade Estadual de Campinas. É pós-doutor pela Universidade de Paris, na França. Atualmente, é professor na UFBA. Junto com Reinaldo Gonçalves, publicou Economia Política do Governo Lula (Rio de Janeiro: Contraponto, 2007). É autor também de História do Plano Real (São Paulo: Boitempo, 2000)

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Qual é a natureza da crise econômica mundial: conjuntural ou estrutural?

Luiz Filgueiras – A crise tem elementos estruturais e conjunturais. Ela tem elementos estruturais porque é mais uma crise de superacumulação da economia capitalista. Portanto, ela é uma reprodução de fenômenos que ocorreram e ocorrem estruturalmente de tempos em tempos nesse sistema. E ela tem uma virulência enorme, a maior, com certeza, depois de 1929, e com o desenrolar pode ser ainda pior, pois ainda desconhecemos a sua profundidade. Trata-se de uma crise da lógica do funcionamento do próprio sistema capitalista.

Ao mesmo tempo, ela é uma crise específica, historicamente determinada pelas condições que o sistema capitalista vem operando nos últimos 30 anos, pelo menos. Temos um sistema capitalista com a predominância do capital-financeiro na sua dinâmica. Uma dinâmica que significa não só uma hegemonia do capital financeiro nas instituições financeiras, mas a própria financeirização dos grandes grupos industriais e produtivos, de tal maneira que esses grandes grupos também criaram instituições financeiras. A própria lógica interna de funcionamento deles é uma lógica de curto prazo, de descartabilidade, de volatilidade etc. Isso implica na reestruturação produtiva e no enxugamento das empresas.

Essa lógica financeira, comandando o capitalismo nos últimos 30 anos, teve como uma das características fundamentais a liberalização dos fluxos de capitais e da acumulação financeira. E isso criou fragilidades enormes e radicalizou uma tendência estrutural do próprio sistema capitalista, pois gerou o descolamento da esfera financeira da economia da esfera produtiva. Ao se unir essa hegemonia financeira com a política neoliberal de desregulamentação, com a liberalização e com a globalização financeira, tivemos a radicalização da tendência da economia capitalista de ter esse descolamento. Isso levou a crise a ter esse tamanho.

Essa crise é a maior de todas, porque não é apenas uma crise cambial de um país de periferia que sofreu um ataque especulativo e os capitais começaram a sair, mas essa é uma crise do centro do sistema capitalista a partir de um país hegemônico. Por isso, ela é gravíssima e continua se espalhando pelo mundo. Portanto, ela tem essa natureza estrutural e, ao mesmo tempo, uma dimensão cultural histórica que diz respeito a essa hegemonia financeira e neoliberal dos últimos anos.

IHU On-Line – Que espécie de paralelo nós poderíamos fazer em relação à crise de 1929 e a crise atual? O que elas têm de semelhanças e de diferenças?

Luiz Filgueiras – A semelhança é a lógica mais geral da crise dentro da perspectiva da análise marxista mais ampla, o que significa que esta é uma crise de superacumulação. O sistema econômico capitalista, empurrado pela competição e pela concorrência, no seu afã da busca pelo lucro, gera uma velocidade de acumulação que o próprio sistema não tem capacidade de digerir. Assim, cria-se uma crise de superacumulação de capitais, que pode se manifestar em superprodução de mercadorias, de máquinas e equipamentos, de papéis e, no limite, a crise significa um excedente de produção. Por isso, ela é semelhante à crise de 1929 e com virulência tão grande quanto.

Agora, a diferença é o início da crise, ou seja, quem a puxa. A de 1929 começou no sistema produtivo e acabou se desdobrando para a esfera financeira. A atual começa no sistema financeiro e começa a descer para o sistema produtivo. Então, para os trabalhadores do mundo inteiro – particularmente, para aqueles dos países emergentes – a crise está começando agora. Ou seja, a partir deste momento e durante 2009, é que os trabalhadores vão sentir a crise, porque ela começa a atingir a produção.

IHU On-Line – Por que há tanta dificuldade em interpretar a atual crise?

Luiz Filgueiras – A dificuldade maior é a falta de informação, porque o sistema ficou tão desregulado que os Bancos Centrais, as autoridades monetárias e as autoridades de governo não têm controle sobre o que se passou e o que se passa. Por isso, eles não sabem o volume de derivativos de produtos financeiros superestruturados, produtos extremamente enrolados. Por outro lado, os bancos também não divulgam exatamente o que está se passando. Então, no final das contas, a dificuldade maior é a falta de transparência do sistema financeiro que não evidencia exatamente o tamanho da crise que está ocorrendo.

IHU On-Line – O senhor acredita numa nova arquitetura financeira mundial?

Luiz Filgueiras – Eu acho que a crise chegou a esse nível exatamente porque não se tinha essa arquitetura financeira. A última caiu em 1970 e, de lá para cá, tivemos essa desregulamentação financeira total. Então, a crise também é produto disso, e a radicalidade dela também. Como o capital se internacionalizou numa velocidade enorme e numa difusão gigantesca, não tivemos estruturas financeiras de regulamentação e, com isso, o capital se move para o plano global. Por isso, precisamos de uma nova estrutura financeira. Se isso vai ser construído ou não, a partir dessa reunião do G20, “são outros quinhentos”.

A impressão que tenho é que o neoliberalismo se esgotou pelo próprio capital, ou seja, ele não foi derrotado por forças políticas contrárias. O próprio capitalismo esgotou o discurso neoliberal, a formulação ideológica do neoliberalismo. Do ponto de vista prático, ele está esgotado não só porque as coisas deram no que deram, mas porque, pelo discurso neoliberal, nós não saímos da crise. Pelo neoliberalismo não há propostas para sair da crise, só há propostas para se afundar ainda mais nela.

IHU On-Line – E o que podemos imaginar que ocupará o lugar do neoliberalismo?

Luiz Filgueiras – O sistema que será colocado no lugar vai demandar da ação das diversas forças políticas na conjuntura. Uma dessas forças políticas, que é fundamental, tem a ver com os Estados Unidos, porque eles estão com uma crise em sua hegemonia. Não é que esse país não tenha mais capacidade de liderar o capitalismo, mas sua hegemonia está extremamente esgaçada. A hegemonia significa ter, ao mesmo tempo, força militar e capacidade de direção política, moral, cultural. Mas os Estados Unidos perderam a capacidade de dirigir politicamente nesses últimos oito anos porque optaram pelo unilateralismo internacional.

Os Estados Unidos escantearam os parceiros tradicionais, não respeitaram a ONU, invadiram o Iraque à revelia de tudo e de todos, mataram Saddam Hussein, mentiram descaradamente. Perderam também a direção moral com essas mentiras e com a prisão de Guantánamo, etc. Então, desgastaram-se totalmente, inclusive culturalmente, pois seu modo de vida é destrutivo para o meio ambiente. O que restou da sua hegemonia? A força, a capacidade militar e a capacidade econômica. No entanto, com a crise, a hegemonia econômica foi altamente questionada, o que torna duvidosa também a ideologia do neoliberalismo.

O resultado disso foi a eleição do Obama, ou seja, a crise explicitou a incapacidade do país em relação ao que estava sendo feito. Obama foi eleito com uma das campanhas mais caras dos Estados Unidos e vem com uma resposta a esse novo momento. Então, além de todas as expectativas populares, Obama vem, sobretudo, na expectativa de recuperar a capacidade de direção política e cultural do país diante do resto do mundo. Essa natureza, juntamente com a ação de outros governos, é que vai dizer como será a saída para crise e o que será construído.

IHU On-Line – As respostas do Brasil à crise têm sido corretas?

Luiz Filgueiras – O governo brasileiro resiste até agora em assumir que o país está dentro da crise e aí é que está o problema. No início, Lula dizia que o Brasil não tinha nada a ver com a crise, que o problema era do Bush. Depois, disseram que a crise atingiria muito levemente. Mais tarde, começaram a tomar algumas medidas. Mesmo agora, o discurso não assume que o Brasil está inserido na crise. Uma hora, Guido Mantega diz que a crise é terrível e, em outro momento, diz que o pior já passou. O governo brasileiro está tão volátil quanto a bolsa de valores.

IHU On-Line – Qual sua opinião sobre a liberação do pacote para conter a crise ao mesmo tempo em que o governo argumenta que não há recursos para corrigir o déficit da aposentadoria?

Luiz Filgueiras – Aí está a contrapartida. Se os trabalhadores não se mobilizarem, a resposta da crise será dada só pelos “de cima”. Os “de baixo” ficarão desamparados, serão as vítimas do desemprego.

IHU On-Line – De que forma o Brasil pode se beneficiar com a crise?

Luiz Filgueiras – Creio que de nenhuma forma, porque a crise terá um efeito destruidor no balanço do parlamento brasileiro por causa do preço das commodities, que são os principais produtos de exportação do país. Teremos um problema muito sério, que vai levar à desaceleração da economia e ao aumento da taxa desemprego. A crise é uma reversão do ciclo econômico que começou em 2003. Agora, o crescimento vai parar, em função da recessão. O problema é como se defender da crise. Com o tipo de política econômica que temos, não há saída para ela, nem mesmo pelo mercado interno. Isso significaria a necessidade de balanço de pagamentos com maiores condições, o que só tende a piorar com a crise.

As ilusões perdidas


Os economistas da chamada corrente principal, confessada a sua incapacidade de reconhecer bolhas de ativos amparadas em expansões alucinadas do crédito, compraram as ilusões do descolamento da China. Esquecidos de suas previsões sobre a quebra dos bancos chineses – segundo eles, carregados de ativos podres –, passaram a se agarrar ao crescimento do Império do Meio, assim como os náufragos ideológicos se desesperam para alcançar os escolhos de suas ideias.

Com o andar da carruagem, de tábua de salvação a China transfigurou-se em peso amarrado aos pés da economia global, agora condenada, inexoravelmente, ao mergulho recessivo. A tese do descolamento é mais uma prova das ilusões necessárias que contaminaram a visão de homens perspicazes e inteligentes, embotados pelos desatinos da euforia e das certezas das duas últimas décadas. Todos estavam, é verdade, corretos a respeito do fenômeno da globalização, ainda que errados na avaliação de suas implicações.

Senão, vejamos. A intensificação das relações de interdependência entre as economias nacionais, fomentada pelo poder econômico dos Estados Unidos, foi a marca registrada das duas últimas décadas de vigorosa (e perigosa) expansão capitalista.

Na verdade, desde o imediato pós-guerra, a regeneração do comércio internacional foi conduzida pela expansão da grande empresa, sob a liderança americana. Numa primeira etapa, a rearticulação proposta pela hegemonia americana, pautada nas regras de Bretton Woods, permitiu a reconstrução dos sistemas industriais da Europa e do Japão. Sob a égide da hegemonia americana, a industrialização de muitos países da periferia foi impulsionada pelo investimento produtivo direto estrangeiro, atraído, então, pelas políticas desenvolvimentistas dos Estados Nacionais.

No último quarto do século XX e começo do XXI, três movimentos centrais e interdependentes promoveram profundas transformações na economia global: a liberalização financeira e cambial, a mudança nos padrões de concorrência e a alteração das regras institucionais do comércio e do investimento, todos conducentes ao reforço do poderio econômico americano. A Ásia converteu-se num dos principais locus do investimento direto e da difusão acelerada do progresso técnico, levados a cabo pelo deslocamento da empresa transnacional desde os anos 1980. Este movimento de transnacionalização do espaço asiático, particularmente da China, foi também uma mudança de escala no processo de deslocalização da estrutura manufatureira americana para o resto do mundo.

Os otimistas chegaram a sustentar que a ampliação do déficit americano em conta corrente poderia continuar por mais uma década, escorado na disposição dos chineses de incorporar mais 200 milhões de trabalhadores nas indústrias voltadas para a exportação. Até completar o ciclo, os chineses estariam dispostos a defender o yuan desvalorizado e, portanto, a acumular reservas e adquirir títulos do Tesouro americano. Isso significaria evitar quaisquer alterações entre as taxas de câmbio nas relações intra-asiáticas, e, particularmente, bloquear mudanças no valor do yuan em relação ao dólar.

# Luiz Gonzaga Belluzzo