quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

A surda guerra oculta

Nossa cidade mais bonita, que era o encanto dos brasileiros nas décadas de 40 e 50, não resistiu à emergência da pobreza

04 de dezembro de 2010 | 16h 00

Francisco de Oliveira

A celebração quase unânime do assalto das forças estatais aos morros da Vila Cruzeiro e Complexo do Alemão revela mais de nossa sociedade, dos impasses da política e do exercício do poder do que as firulas do PMDB e o negaceio do PT em torno da formação do governo da presidente Dilma.

Sob o mantra do combate ao crime organizado, o que se oculta é uma surda guerra de classes na outrora charmosa e agora ultraperigosa Cidade Maravilhosa. Essa guerra explode de tempos em tempos nos "bondes" (o termo é aplicado aos bandidos) das forças repressivas, levantando apenas a ponta do iceberg. Na verdade, nossa cidade mais bonita, ao lado de Salvador, que fazia os encantos dos brasileiros nas décadas de 40 e 50 do século passado, não resistiu à emergência da pobreza rude e sem eufemismos, como aqueles que cantava Sílvio Caldas em seu Favela.

Por mais maquiagem que as teles imprimam aos seus jornais, mesmo os mais realistas, como o do senhor Datena na Band, o desfile que se vê é menos o das tropas que no resto do ano não têm o que fazer, salvo patrulhar o Haiti, que é um Rio mais pobre e menos charmoso, e mais o de pessoas pobres, na maior parte das vezes pobremente vestidas ou pelo menos decentemente pobres, cujo calçado não passa de uma sandália havaiana falsificada. Por trás das câmaras, o rancor surdo das outras classes sociais, e sem pieguice, a resistência feroz, que se transforma periodicamente em ataques ainda mais ferozes, de uma parcela dos pobres que se transformou em traficantes, já que a civilização capitalista brasileira não lhes oferece outros meios de sobrevivência.


O aplauso de vastas porções da população do Rio apenas confirma que se trata de um ódio rancoroso; e, se enquetes forem realizadas em outras cidades, não tardará a aparecer um clamor público, já insinuado pelas autoridades, para que a façanha criminosa do Estado no Rio seja replicada em outros lugares do nosso País. A população viu, agora ao vivo e em cores, o reality show do Capitão Nascimento subindo o morro com o Bope; aliás, os que vivem nas favelas já se acostumaram a isso. Desta vez a vida ganhou da arte: mesmo oTropa de Elite 2, cujos mais de 10 milhões de espectadores atestam o fascismo no ar, perdeu feio para a violência estatal em nome da lei. Se no capítulo da economia o capitalismo periférico açulado até a exasperação pelo governo Lula mal consegue se manter dentro dos limites da lei - porque a regra é enriquecer às custas do fundo público de qualquer maneira -, no capítulo da violência esperava-se apenas um evento mais provocador para soltar os cães da repressão sem nenhuma homenagem do vicio à virtude. O episódio mais antigo do PCC em São Paulo já havia quase provocado essa explosão de alegria do ódio reprimido.

Agora, o Rio deixou à solta os cães de aluguel. Ninguém se engane: por trás das fachadas engalanadas do Brasil do futuro que já chegou nas prateleiras das Casas Bahia, vive uma sociedade esgarçada, forçada a correr atrás do êxito a qualquer preço, liquidando sem juros qualquer valor civilizatório, que a muito custo conseguimos erguer depois da barbárie da ditadura militar.

Nenhum cientista social conseguiria ser mais contundente e mais preciso para diagnosticar a sociedade brasileira que essa crise apenas localizada no Rio. Está nas livrarias Hitler, do historiador britânico Ian Kershaw. Qualquer semelhança das brigadas que percorriam as ruas de Munique nos anos 20 com a subida aos morros e a reação dos traficantes no Rio não é coincidência: no ar, esse sentimento de insegurança, parente próximo do fascismo, rapidamente acende o rastilho de pólvora das relações de mercado não mercantilizadas, que são a raiz da pobreza no Brasil, e se transforma na violência mais desenfreada. A situação brasileira, de que o Rio é o emblema, pelos aplausos generalizados, pelos milhões de espectadores do Tropa de Elite 2, e no fim, mas não menos importante, pela presteza da Marinha em atender ao pedido do governo do Rio, parece que pede um ditador com punho de ferro. Felizmente, por ora, não tem nenhum candidato, não saímos de uma derrota militar severa, não derrubamos uma velha monarquia, nem há uma Grande Depressão. Há uma satisfação tola no ar: já realizamos a sexta eleição direta para presidente da República e estamos consolidando a democracia. Estamos? Não há "titio Adolf" à vista, mas não provoquemos a história; ela costuma responder à violência com violência.

Francisco de Oliveira é professor emérito da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP

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